terça-feira, 1 de novembro de 2016

E AÍ ME DEU SAUDADE DO QUE SOMOS DE FATO



Eu tenho de pegar no papel. É assim com o jornal, que tenho de folhear, marcar com caneta amarela, voltar, anotar, guardar aquela folha se for preciso.
É assim com o livro, que eu tenho de amalgamar,abraçar, segurar, dormir por cima e, de vez em quando, espiá-lo, onde ele estiver,  na cômoda, no banco, na cama ,no chão e suspirar, acariciar como a um amante.
O papel me faz bem, assim como os cadernos, blocos, papeizinhos (guardanapos de bar, papel de pão), anotações na bolsa, nos bolsos, na mesa, na casa, do lado do computador.
Nada substitui a caneta deslizando romanticamente pelas linhas do caderno ou bloco, ou até na folha solta. Há um espaço sagrado milenar que é necessário respeitar quando se escreve.
Escrevo muito, por óbvio, no teclado do computador, que substituiu a minha Lettera 22 e, depois a  IBM elétrica. Mas necessário para mim se faz preservar o papel e o espaço criativo que se estabelece entre a caneta e a linha, e que a máquina não substituirá nunca.
Não consigo imaginar uma submissão escravizante a uma telinha de celular que tire de mim o delicioso contato, olho no olho, mão na mão, corpo a corpo, voz, sensações, cheiros, matizes, saberes que passam a fazer parte do que seremos a partir de cada contato. Para isso, creio, estamos aqui nesta empreitada encarnatória, tenho a certeza !
Não consigo imaginar também eu digitando e caminhando na rua, tropeçando e esbarrando nas pessoas, por que um email chegou ou um recadinho que eu não posso deixar de olhar. O celular é minha ferramenta e não o contrário.
E assim vejo também os aparelhos moderníssimos que ocupam os ouvidos e tempo das pessoas, ilhando-as, especialmente quando estão em contato familiar, de amigos, lazer ou fazendo seu esporte.
Como é que se vai descansar se estamos desconectados do som da voz da criança ao nosso lado, da esposa ou marido, do canto dos pássaros e do som melodioso dos passos na calçada¿
E olhe que uma de minhas matérias primas de trabalho é o som, a música, as notas musicais. Porém, para caminhar ou correr e para meditar é preciso estar quieta, em contato comigo mesma, e tenho de estar solta, com roupas leves, braços, olhos e ouvidos livres, e livre de qualquer aparelho de qualquer natureza.
Isso não quer dizer que em algum momento do dia ou da semana, não ouça música, mas aí ela tem de ser caudalosa, andar pelas paredes da casa e do carro. Os fones, só uso a trabalho, para uma nova música ou uma gravação em estúdio ou ensaio. Só!
Observo as pessoas, principalmente a moçada, digitando febrilmente, rua afora, em todas as horas, sem nem levantar os olhos.
Me faz lembrar um dia quando retornei à cidade natal, sedenta de um abraço de uma amiga de infância que eu não via há tempos. Ela digitava enlouquecida um grande  teclado cinza, pois os computadores haviam chegado e eram a grande novidade. Ela preferiu ficar ali sentada onde estava, sem esboçar nenhum olhar mais significativo, abraço ou aperto de mão, para lembrar nossos folguedos infantis, depois de tanto tempo longe.
Parei, muda, na soleira da porta  e me retirei quieta e perplexa, como uma intrusa, e me pergunto até hoje: onde está aquela amiga-irmã que agora é só um quadro na parede da memória¿
Nunca mais nos falamos direito e somos até ‘amigas’ na rede social, mas a parafernália tecnológica consumista nos separou de fato.
Creio que foi o Canal que falou da individualização perigosa para a qual estamos caminhando e, daqui a pouco, vamos nos falar cada vez menos a viva voz e cada vez mais por email ou watts, e chorar lentas lágrimas de saudade de nós mesmos e do que somos de fato, e esquecemos.


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